Pessoal, segue parte de um texto de Marilena Chaui,
professora de Filosofia da USP, sobre as manifestações das últimas semanas. O
seu foco é a cidade de São Paulo (mergulhada em uma série de problemas que ela
chamou de "inferno urbano"), mas o trecho que destaquei serve também para
os demais protestos no Brasil.
Nas décadas de 1970 a 1990, as
organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos
sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia
no Brasil pelos seguintes motivos:
1. introdução da ideia de direitos sociais, econômicos
e culturais para além dos direitos civis liberais;
2. afirmação da capacidade auto-organizativa da
sociedade;
3. introdução da prática da democracia
participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos
partidos políticos.
Numa palavra: sindicatos, associações,
entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a
política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos
políticos como mediadores institucionais de suas demandas. Isso quase
desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo (sic), que produziu:
1. fragmentação, terceirização
e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços) dispersando a
classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de
identidade e de luta;
2. refluxo dos movimentos
sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta
daquela que rege os movimentos sociais;
3. surgimento de uma nova
classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada e que por
isso ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço
público e que por isso mesmo é atraída e devorada por ideologias
individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a
ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição,
o isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade
solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se contra os efeitos
do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos
sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre
dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares, tiveram
uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares
de manifestantes nas ruas.
O pensamento mágico
A convocação foi feita por
meio das redes sociais. Apesar da celebração desse tipo de convocação, que
derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, entretanto é preciso
mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas
características que o aproximam dos procedimentos da mídia:
1. é indiferenciada: poderia
ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva, etc. e calhou ser por
causa da tarifa do transporte público;
2. tem a forma de um evento,
ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora
tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou á
recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um
espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street
pelos jovens de Nova York e que, antes de se dissolver, se tornou um ponto de atração
turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois
com o fato das manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma
forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os
poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);
3. assume gradativamente uma
dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento
tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários
são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e
econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se
na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa. A dimensão
é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim
também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência
de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos
da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia
de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;
4. a recusa das mediações
institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de
massa, portanto, indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente,
ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento assume a aparência de
que o universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente,
seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando
lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem
de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as
manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos
políticos. Sabemos que o MPL é constituído por militantes de vários partidos de
esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos
partidos de origem. Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de
partidos políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes
partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados, e expulsos como
oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa. Ou seja,
alguns manifestantes praticaram sobre outros a violência que condenaram na
polícia.
A crítica às instituições
políticas não é infundada, mas possui base concreta:
1. no plano conjuntural: o
inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos
governantes;
2. no plano estrutural: no
Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser
clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses
privados; a qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível
e a corrupção é estrutural; como consequência, a relação de representação não
se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;
3. a crítica ao PT: de ter
abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto
é, o campo das lutas sociais auto-organizadas e ter-se transformado numa
máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo
dos últimos 20 anos).
Isso, porém, embora explique a
recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do
problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em
suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos
políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um
lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuísmos da
ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos
manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana
e democrática.
De fato, a maioria dos
manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política
(ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público),
quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é,
valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes
morais das pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições
públicas enquanto instituições republicanas. A ética da política, no
nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições
democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada
pela ditadura, que força os partidos políticos a coalizões absurdas se quiserem
governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas
e abrem as comportas para a corrupção.
Ora, ao entrar em cena o
pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado que, até que uma nova forma
da política seja criada num futuro distante quando, talvez, a política se
realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário
de uma ditadura) ninguém governa sem um partido, pois é
este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para
concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos. Bastaria que
os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso:
Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes
(partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um
homem sem partido. Resultado: a) não teve quadros para montar o governo, nem
diretrizes e metas coerentes e b) deu feição autocrática ao governo, isto é, “o
governo sou eu”. Deu no que deu.
Marilena Chaui. Texto completo em http://coletivodigital.org.br/images/arquivos/as_manifestacoes_de_2013_por_marilena_chaui.pdf
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